Scorpius

Ocasionalmente, os livros de Fleming flertavam com o sobrenatural, as estranhas “coincidências” que selavam os destinos de Bond e de seus antagonistas, antes que estes se enfrentassem no campo de ação, e mostravam os vilões utilizando a superstição para lograrem seus objetivos (sendo, os exemplos mais notórios, Mr. Big e Scaramanga, figuras “messiânicas” para determinadas raças e culturas).

“Scorpius” foi a primeira trama de Garder a retornar a esses temas (continuados no igualmente místico “Garra-Quebrada”, publicado alguns anos depois). O Mau é Vladimir Scorpius, ou “Padre Valentine”, uma espécie de precursor de David Koresh, mentor da “auto-imolação” maciça a que se submeteu um grupo de fanáticos em um rancho de Wacko (Texas, EUA) em 1993.

Scorpius, como Anton Murik ou Nena Blofeld, é um modelo mais próximo do tradicional oponente flemingiano (normalmente, dotado de “natureza física e psíquica excepcional”, parafraseando Eco em Il Caso Bond). O vilão tem um histórico típico: fez fortuna com negócios ilícitos (tráfico de armas para grupos terroristas, o que lhe rendeu a alcunha de “Rei do Terror”), antes de assumir uma fachada respeitável e ascender na sociedade londrina. Sob a identidade de Valentine, é guru de uma seita religiosa, a “Sociedade dos Humildes”. É também um empresário de visão, pois patenteou os cartões de crédito “Avante Carte”, que oferecem “facilidades financeiras” a ricos e pobres que atendam a seus cultos. Além do carisma, ele recorre à lavagem cerebral para arregimentar seguidores, e 007 admite estar diante de um inimigo formidável ao ouvir o testemunho de uma de suas vítimas, a jovem socialite Trilby Shrivenham (que, para desgosto da família aristocrática, converteu-se à “Sociedade dos Humildes”):

“Os cabelos da nuca de Bond eriçaram-se porque, daquela bela criatura, veio uma voz que poderia perfeitamente ter saído da sepultura: rouca, estridente e irônica, como se fosse demoníaca:

– Os humildes herdarão… Os humildes herderão a Terra! – resmungou a voz, e Bond soube logo que não era Trilby Shrivenham que falava quando ela continuou a dizer:

– Os humildes herdarão… Os humildes herdarão a Terra.

Depois deu uma gargalhada que parecia vir de muito longe, tão horrível que tanto o médico quanto a enfermeira recuaram, afastando-se da doente (…). Era como se Trilby olhasse para algo que mais ninguém pudesse ver, ali no quarto. Deu outra gargalhada e disse:

– O sangue dos pais caíra sobre os filhos!”

“Scorpius” (Capítulo 5 – Os Humildes Herdarão)

Quando M o coloca no encalço de Scorpius, Bond descobre que a crença professada por seu oponente é um método para criar hordas de “robôs”, prontas para matar sob as ordens do líder. Com os fiéis sob controle e catalogados como gado, Valentine se prepara para encetar uma guerra contra os governos ocidentais, tramando atentados a presidentes e primeiros-ministros. O cessar-fogo, é claro, poderá ser negociado mediante bom pagamento. É um plano infalível, pois a única forma de impedir as mortes será coibir a liberdade de ir e vir nas sociedades ocidentais. Quanto aos “Avante Cartes”, são “armas” igualmente nocivas à ordem estabelecida, uma vez que possuem microchips que dão acesso direto à Bolsa de Valores inglesa (um método para desequilibrar a economia e sabotar as próximas eleições).

Na qualidade de “Rei do Terror”, Scorpius vive em uma ilha ainda mais hostil que a de Tamil Rahani em “Nobody Lives Forever”. Em seu refúgio, cobras e escorpiões passeiam livremente, o lugar é uma extensão geográfica de sua natureza peçonhenta. Ali, após presenciar estranhos rituais litúrgicos e conhecer os planos do Mau, Bond assiste à morte de sua parceira de missão, a agente norte-americana Harriet Horner (os EUA também temem o avanço dos “humildes”). O herói impede o esquema diabólico de Scorpius, mas isto não encerra o caso: em outra de suas vendettas, 007 retribui a maldade de Scorpius obrigando-o a caminhar por uma trilha repleta de serpentes d’água. Mais uma vez, Bond infringe a ética do Serviço Secreto e aplica a Lei do Cão no inimigo. Questionável ou não, trata-se de um grande momento da série de Gardner, influenciado certamente pelas igualmente polêmicas execuçoes de Robber e Blofeld, em “Viva e Deixe Morrer” e “Só Se Vive Duas Vezes”.

“Scorpius” foi o primeiro Bond da nova série a invocar, com propriedade, a mitologia de Fleming, e em certo sentido, a transcendê-la, tocando em um ponto sensível que não poderia ser abordado nos livros originais (contemporâneos de uma era mais conservadora): os perigos da crença institucionalizada.

“Sexo, Glamour & Balas” de Eduardo Torelli.

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