Licença Renovada

No início dos anos 1980, 007 recobrara sua popularidade junto ao grande público. Um mérito que pode ser atribuído à EON Productions, que reiventou a série de filmes com 007 – O Espião Que Me Amava e perpetuou esse êxito com 007 Contra O Foguete Da Morte e 007 – Somente Para Seus Olhos. O último longa-metragem estreou no mesmo ano em que “Licença Renovada” chegou ao prelo, após um longo jejum de Bonds literários.

John Gardner não tinha a reputação de Amis no oficio, mas escrevia um número considerável de tramas de espionagem relativamente bem-sucedidas (como “The Nostradamus Traitor”, de 1979 e “The Garden Of Weapons”, de 1980). Com um passado interessante, Gardner foi marine Naval, mágico profissional e padre, antes de abraçar a carreira literária, o autor matinha uma carreira como ficcionista desde os anos 1960. Seu contrato com a Glidrose Publications (detentora dos direitos literários de 007 na época) para dar continuidade a série de Fleming, foi assinado em 1980.

 Mas a proposta não o tentou de imediato. Ele não acreditava que o projeto vingasse e sabia que comparações entre seus livros e os Bonds originais seriam inevitáveis. O exemplo de Kingsley Amis (que sofrera criticas desfavoráveis ao publicar “007 Contra Pequim”) prenunciava um trabalho estafante e cheio de dissabores, previsão que se concretizou. Segundo o autor, a produção de cada livro precisava atender às expectativas de três “forças” envolvidas no negócio: a Glidrosc e os editores britânicos e norte-americanos. A liberdade criativa no desenvolvimento dos novos enredos, assim, foi cerceada já na gênese do empreendimento.

Nas palavras do autor, o ponto de partida para a nova série foi “colocar Bond para domir onde Fleming o deixara, nos anos 1960, e acordá-lo na década de 1980, certificando-se de que o personagem não envelhecera, mas acumulara um pensamento moderno sobre inteligência e assuntos de segurança.” Esta diretriz foi seguida em “Licença Renovada”, cujas primeiras páginas são um prazeroso exercício de imaginação.

No capítulo 2, Bond é reapresentado ao público enquanto dirige um Saab 900 Turbo (substituindo o velho Bentley Mark II Continental que o herói guiava nos derradeiros livros de Fleming) por uma estrada de Surrey, Inglaterra. 007 segue para o chalé que acabou de construir no campo, como alternativa a seu velho “refúgio” em King’s Road, o apartamento administrado por May, que sofreu poucas alterações nas últimas décadas. As coisas vão bem na vida privada, mas a profissional está estagnada: “Recentemente, muitas emergências implicavam em passar dias a fio em uma sala de controle ou comunicações”, reflete o herói, com a costumeira melancolia. “Os tempos haviam mudado e Bond não gostava dos diversos freios políticos aplicados ao Serviço Secreto, para o qual trabalhara com tanta fidelidade e por mais tempo do que preferia recordar”.

Em “Licença Renovada”, a inteligência britânica está em declínio. A seção Duplo-0 começou a ser desativada (como parte de um “pacote” de medidas do governo para conter a recessão) e os opcionais secretos do Saab de Bond, pára-choques reforçados com aço, vidros à prova de balas e pneuws ultra-resistentes, foram instalados por uma empresa privada (a Communication Control System, CCS), e não pela Seção Q. Tempos “bicudos” que, obviamente, refletem a política de Margaret Thatcher no início dos anos 1980, quando a Inglaterra elevou o valor da Libra e reduziu a inflação, mas fez recuar a produção industrial e, consequentemente, aumentou os índices de desemprego. Em comparação à época de Fleming, só um elemento permanece rigorosamente inalterado, James Bond. Quando o agente (que, a despeito da anunciada extinção da Seção Duplo-0, não perdeu seus privilégios junto a “M” ou à organização) é convocado para uma nova missão, Gardner nos concede a primeira visão do personagem nessa era thatcheriana:

“A senhorita Moneypenny ainda estava corada quanto Bond desapareceu na sala de ‘M’ e fehcou a porta. Uma luz vermelha piscou por cima da porta no instante em que se fechava. Ela ficou com o olhar perdido no espaço por um momento, a cabeça dominada pela imagem do homem que acabara de ingressar no santuário de ‘M’, o rosto bonito, bronzeado, as sobrancelhas longas sobre os olhos azuis bem claros, a cicatriz de cinco centímetros na face direita, o nariz reto, a boc asuave, embora com um vestígio de crueldade. Uns poucos fios brancos começavam a surgir nos cabelos negros, uma mecha caindo sobre o olho direito. Não havia qualquer flacidez nas faces e o queixo continuava reto e firme. Era o rosto de um pirata sedutor, pensou Moneypenny. (…)”

“Licença Renovada” (Capítulo 2 – Pensamentos Numa Estrada de Surrey)

Os fios grisalhos nos cabelos negros do herói são, a rigor, o único sinal da passagem do tempo. Ainda mais surpreendentemente é o fato de todo o staff original do MI6, “M”, Moneypenny, Bill Tanner e o armeiro, Boothroyd, ainda estar na ativa em 1981. Apesar de absurdo, o cenário é importante para a manutenção do “clima” das novelas originais e foi uma sábia decisão mantê-lo assim.

James Bond é destacado para investigar as atividades de Anton Angus Murik, multimilionário que almeja provocar uma “Síndrome da China” (referência ao filme homônimo estrelado por Jane Fonda) tamanho-família ao resfriar os reatores de fissão de seis usinas nucleares (quatro da Europa e duas dos EUA), simultaneamente. Com isto, Murik, que também é um eminente cientista, convencerá as superpotências a investir em sua criação máxima: um reator ultra-seguro comercializado a peso de ouro. Os atentados às usinas serão encetados por defensores do meio-ambiente, arregimentados para o plano por um terriista internaciona, Franco.

O enredo tem similaridades com os filmes (nos quais megalomaníacos genocidades são um clichê, vide os exemplos de Max Zorin, Elliot Carver e Gustav Graves), mas é desenvolvido em concordância com o estilo de Fleming: a fórmula dos livros originais é reeditada integralmente, nem a obrigatória cena de tortura foi esquecida, já que Murik utiliza um emissor de altas frequências sonoras para tentar induzir 007 a uma confissão. Também há diversas convenções flemingianas dispersas na narrativa, como o background de 2ª Guerra (há menções ao Projeto Manhattan) e a própria descrição física de Murik, um personagem com traços monstruosos: o vilão é baixo, tem “cara de buldogue” e move-se de modo claudicante (“como um pássaro em terra firme”). O Mau tem, sob sua custódia, a encantadora Lavender Peacock (uma Domino Vitale “modelo 1981”) e, à maneira de Drax e Goldfinger, costuma trapacear em jogos, especificamente, em corridas de cavalos.

Bond frustra os planos do industrial, impedindo a destruição dos reatores, e segue-o até a Escócia, onde ambos têm um derradeiro confronto. Armado com uma besta (tomada de empréstimo da coleção de armas antigas do “Castlo Murik”), 007 aniquila o rival e liberta Lavender de seu jogo maligno. Os dois vivem um affair antes que Bond despache a moça para uma Faculdade Agrícola em Edimburgo e retorne à vida de celibatário.

Em suas futuras incursões ao mundo de James Bond, Gardner se distanciaria mais e mais do estilo de “Licença Renovada”, um ponderado meio-termo entre os livros e filmes de 007, conduzindo as novelas por uma senda de acertos e equívocos.

“Sexo, Glamour & Balas” de Eduardo Torelli.

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